domingo, 6 de outubro de 2013

Barril Dobrado!

Nos últimos dias vi algumas pessoas compartilhando e fazendo piada de uma notícia: Igor Kannário se filiando ao PTN e podendo concorrer a um cargo de deputado nas próximas eleições. Para mim a grande piada é justamente um partido como o PTN existir e ainda disputar eleição.


Diferente de Kannário, o PTN não possui discurso político algum. A legenda faz parte do que eu chamo de “partidos chantagistas”, sem programa, sem ideologia e que a única razão de existir é: chantagear quem está no governo. Como os governantes dependem do Legislativo, os vereadores, deputados e senadores desses partidos negociam de forma clara: quer que eu vote a favor de seus projetos? Então me dê algo em troca.

A coisa é tão natural que não se tem nem mais vergonha de se reconhecer isso. No começo do ano, Carlos Muniz (o vereador mais votado de Salvador) ameaçou, sem pudor algum, que o PTN poderia virar oposição ao governo de ACM III, caso o prefeito não fosse mais generoso com o partido. Ou seja, não se avalia projetos ou programas de governo, apenas se torna aliado ou inimigo a partir do valor da oferta.

O PMDB é o maior problema do sistema político brasileiro, nesse sentido. Mas, em Salvador, o principal é o PTN. o partido com maior representatividade na cidade – sim, o eleitor soteropolitano se identifica com ele e por isso fez dele a maior bancada da Câmara.

Já Kannário, talvez seja a principal voz de um fenômeno que há alguns anos vem transformado o perfil do soteropolitano: a elevação da autoestima do morador da periferia. Sempre foi muito comum o morador ter vergonha de dizer o nome de seu bairro, de onde veio. Hoje, eles sentem orgulho, batem no peito e dizem “eu sou favela”. Essa transformação se deve, sobretudo, ao pagode baiano que, através da música, reforçou o orgulho dos moradores da periferia – algo semelhante à influência do rap nas comunidades de São Paulo.



Diferentemente de bandas como Bailão, Play Way e New Hit que só cantam “baixaria”, Kannário carrega consigo um discurso político. Da sua maneira, da sua perspectiva, mas carrega. Ele canta para e sobre a favela, fomentando o orgulho e auto-reconhecimento. Quando Edcity canta e Kannário ecoa “Você é favela ou é orla?”, ele resume parte de seu discurso. Essa frase samba com o marxismo: a consciência do proletário de que a sociedade é dividida em classes; a necessidade de união da classe trabalhadora; e o enfrentamento. “Favela” passa a ser motivo de orgulho e ser “orla” é motivo de desqualificação.

Esse discurso se materializa durante o carnaval. Os trios de pagode são do povão, a rua é da favela. E o "playboy" que tiver de bobeira, “ocupando” o espaço que não é dele, pode levar um murro gratuitamente. É o tão complexo ódio de classes, sendo simplificado em frações de segundo, com apenas um soco. É a violência que Kannário também canta e, de certa forma, estimula. Marx já previa que a vitória do proletário dependeria da violência, para superar a ordem social vigente. Os “seguidores” de Kannário podem não planejar suas ações dentro dessa perspectiva, mas a reproduz. A união entre os moradores de determinado bairro periférico é uma necessidade de resistência, e a violência contra quem é de fora é uma forma de reagir e ocupar espaços que não lhe são concedidos durante o ano inteiro. É experimentar um pouco do poder que normalmente ele não tem. É responder, de certa forma, a alguns tipos de opressão que ele sofre diariamente.

Kannário e o pagode também resinificaram o conceito de “gueto”. O tornou algo positivo, sinônimo de favela, motivo de orgulho. Isso também incide politicamente, positivamente em alguns aspectos, mas negativos em outros, como a aceitação da condição de gueto, que implica cada vez mais no isolamento dos bairros periféricos, fechados em si mesmo e, portanto, sem interagir com a cidade e ter acesso a serviços públicos e ao intercâmbio cultural das metrópoles.



Kannário, portanto, é um forte representante político de Salvador e da periferia. Um tipo de política e discurso que cabe julgamento e até contestação. Mas não é isso que o PTN quer dele. O partido quer é a fama do artista para usá-lo para puxar votos nas eleições, eleger o máximo de deputados possíveis e, assim, ter mais poder de barganha na hora de chantagear o próximo governador eleito.

E quem vota nele, provavelmente estará votando no “artista” Kannário e não no ator político. E, caso eleito, ele só se tornaria mais um peão no jogo de xadrez do Legislativo: serviria para votar, de acordo com a orientação do partido, normalmente a favor dos projetos do governo, mesmo que prejudiciais à sua própria “classe”, a quem ele diz representar.


Piada, portanto, é partidos como o PTN existirem e serem criados a cada ano. É ter uma legislação que permite que governos se tornem escravos de parlamentares chantagistas. É ter eleitores votando sem critério, sem informação e sem esclarecimento. Piada é saber que nós, soteropolitanos, concedemos a maior representatividade política de nós mesmos ao PTN. Isso sim é barril!

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