Nos últimos dias vi
algumas pessoas compartilhando e fazendo piada de uma notícia: Igor Kannário se
filiando ao PTN e podendo concorrer a um cargo de deputado nas próximas
eleições. Para mim a grande piada é justamente um partido como o PTN existir e
ainda disputar eleição.
Diferente de Kannário,
o PTN não possui discurso político algum. A legenda faz parte do que eu chamo
de “partidos chantagistas”, sem programa, sem ideologia e que a única razão de
existir é: chantagear quem está no governo. Como os governantes dependem do
Legislativo, os vereadores, deputados e senadores desses partidos negociam de
forma clara: quer que eu vote a favor de seus projetos? Então me dê algo em troca.
A coisa é tão natural
que não se tem nem mais vergonha de se reconhecer isso. No começo do ano,
Carlos Muniz (o vereador mais votado de Salvador) ameaçou, sem pudor algum, que
o PTN poderia virar oposição ao governo de ACM III, caso o prefeito não fosse
mais generoso com o partido. Ou seja, não se avalia projetos ou programas de
governo, apenas se torna aliado ou inimigo a partir do valor da oferta.
O PMDB é o maior problema
do sistema político brasileiro, nesse sentido. Mas, em Salvador, o principal é
o PTN. o partido com maior representatividade na cidade – sim, o eleitor
soteropolitano se identifica com ele e por isso fez dele a maior bancada da
Câmara.
Já Kannário, talvez
seja a principal voz de um fenômeno que há alguns anos vem transformado o
perfil do soteropolitano: a elevação da autoestima do morador da periferia.
Sempre foi muito comum o morador ter vergonha de dizer o nome de seu bairro, de
onde veio. Hoje, eles sentem orgulho, batem no peito e dizem “eu sou favela”.
Essa transformação se deve, sobretudo, ao pagode baiano que, através da música,
reforçou o orgulho dos moradores da periferia – algo semelhante à influência do
rap nas comunidades de São Paulo.
Diferentemente de
bandas como Bailão, Play Way e New Hit que só cantam “baixaria”, Kannário
carrega consigo um discurso político. Da sua maneira, da sua perspectiva, mas
carrega. Ele canta para e sobre a favela, fomentando o orgulho e auto-reconhecimento.
Quando Edcity canta e Kannário ecoa “Você é favela ou é orla?”, ele resume
parte de seu discurso. Essa frase samba com o marxismo: a consciência do
proletário de que a sociedade é dividida em classes; a necessidade de união da
classe trabalhadora; e o enfrentamento. “Favela” passa a ser motivo de orgulho e
ser “orla” é motivo de desqualificação.
Esse discurso se
materializa durante o carnaval. Os trios de pagode são do povão, a rua é da
favela. E o "playboy" que tiver de bobeira, “ocupando” o espaço que não é
dele, pode levar um murro gratuitamente. É o tão complexo ódio de classes,
sendo simplificado em frações de segundo, com apenas um soco. É a violência que
Kannário também canta e, de certa forma, estimula. Marx já previa que a vitória
do proletário dependeria da violência, para superar a ordem social vigente. Os “seguidores”
de Kannário podem não planejar suas ações dentro dessa perspectiva, mas a
reproduz. A união entre os moradores de determinado bairro periférico é uma
necessidade de resistência, e a violência contra quem é de fora é uma forma de
reagir e ocupar espaços que não lhe são concedidos durante o ano inteiro. É
experimentar um pouco do poder que normalmente ele não tem. É responder, de
certa forma, a alguns tipos de opressão que ele sofre diariamente.
Kannário e o pagode
também resinificaram o conceito de “gueto”. O tornou algo positivo, sinônimo de
favela, motivo de orgulho. Isso também incide politicamente, positivamente em
alguns aspectos, mas negativos em outros, como a aceitação da condição de gueto,
que implica cada vez mais no isolamento dos bairros periféricos, fechados em si
mesmo e, portanto, sem interagir com a cidade e ter acesso a serviços públicos
e ao intercâmbio cultural das metrópoles.
Kannário, portanto, é
um forte representante político de Salvador e da periferia. Um tipo de política
e discurso que cabe julgamento e até contestação. Mas não é isso que o PTN quer dele. O partido
quer é a fama do artista para usá-lo para puxar votos nas eleições, eleger o
máximo de deputados possíveis e, assim, ter mais poder de barganha na hora de
chantagear o próximo governador eleito.
E quem vota nele,
provavelmente estará votando no “artista” Kannário e não no ator político. E,
caso eleito, ele só se tornaria mais um peão no jogo de xadrez do Legislativo:
serviria para votar, de acordo com a orientação do partido, normalmente a favor
dos projetos do governo, mesmo que prejudiciais à sua própria “classe”, a quem
ele diz representar.
Piada, portanto, é partidos
como o PTN existirem e serem criados a cada ano. É ter uma legislação que
permite que governos se tornem escravos de parlamentares chantagistas. É ter
eleitores votando sem critério, sem informação e sem esclarecimento. Piada é
saber que nós, soteropolitanos, concedemos a maior representatividade política
de nós mesmos ao PTN. Isso sim é barril!