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O
fato
Numa segunda-feira de carnaval, um jovem, mulato, acerta
um soco no rosto de outro jovem, branco, que estava distraído no meio da folia.
As características do agressor foram pouco reconhecidas, devido a sua rapidez
ao se misturar com o restante da multidão. As características do agredido:
jovem, branco, músculos definidos, vestido com um abadá de um bloco de
carnaval, bermuda e tênis da marca “Nike”.
O
fato, sob o ponto de vista do agredido
Para o agredido, o ato violento foi totalmente gratuito. Ele
não havia provocado nenhuma briga, nem se quer visto o seu agressor. Segundo
ele, não houve motivos para a agressão.
Mapa
social do carnaval
A figura acima representa
um esboço da distribuição espacial e social que ocorre no carnaval de Salvador.
Os números representam:
1- Uma fila de soldados quase todos
pretos, dando porrada na nuca de malandros pretos, de ladrões mulatos e outros
quase brancos, tratados como pretos, só pra mostrar aos outros quase pretos (e
são quase todos pretos) como é que pretos, pobres e mulatos e quase brancos,
quase pretos de tão pobre são tratados.
2- Um confortável camarote, contendo
um deputado em pânico, mal dissimulado.
3- Um trio elétrico de um artista,
filmado pelas lentes do Fantástico, visto pelos olhos do mundo inteiro, e
embalado pelo batuque, um batuque com a pureza de meninos uniformizados de
escola secundária em dia de parada.
4- Vendedores ambulantes, quase pretos
de tão pobres.
5- Cordeiros dos blocos, pobres como
podres.
6- Foliões da “pipoca”, quase todos pretos
e quase brancos e quase pretos. Além de malandros pretos, de ladrões mulatos e
outros quase brancos.
7- Foliões do bloco, representantes da
grandeza épica de um povo em formação, que nos atrai, nos deslumbra e estimula.
Motivações
Os policiais estão no circuito carnavalesco a trabalho,
sob orientação dos seus comandantes, com a missão de evitar e reprimir
eventuais crimes, sobretudo brigas e furtos. Para estarem no carnaval eles precisam
já fazer parte da corporação policial.
Os políticos e demais representantes da elite
sócio-econômica da sociedade estão nos camarotes em busca de visibilidade ou
diversão, associado a um maior conforto e espaço físico para prestigiar os
trios elétricos que seguem. Desta forma eles permanecem afastados dos foliões
das ruas, protegidos por uma estrutura particular, onde, inclusive, não circula
os policiais. Para estarem no carnaval eles precisam ser convidados pelo
responsável pelo camarote ou pagar uma quantia que varia entre 50 a 400 reais diários.
Os artistas estão interessados em apresentar os seus
shows no circuito carnavalesco. As razões desse interesse são diversas, podendo
ser apenas por diversão, como também por motivos econômicos, comerciais ou
promocionais. Para estarem no carnaval eles precisam ser patrocinados por
empresas, pelas secretarias municipais e estaduais ou pela vendagem de abadás –
ou por tudo isso junto.
Os vendedores ambulantes estão em busca de lucros com a
venda de seus produtos, para complementar a sua renda mensal que normalmente é
baixa ou até inexistente. Para estarem no carnaval eles precisam obter uma
licença municipal a partir do pagamento de uma taxa no valor de 25 a 100 reais (ou não pagar,
mas correr o risco de terem suas mercadorias apreendidas). Também precisam se
alimentar e, sobretudo, dormir no seu ponto de venda, sob risco de perder o
espaço para outros vendedores que disputam uma vaga; nem que para isso os
vendedores tenham que levar sua família, incluindo crianças, para dormirem na
rua e, assim, garantir o seu espaço.
Os cordeiros estão em busca de uma remuneração, ao final
de seu trabalho. Para estarem no carnaval eles precisam ser convocados pelos
responsáveis pelos trios elétricos, em seguida passar cerca de 4 horas e 5 quilômetros
segurando um cordão e controlando a entrada e saída dos foliões nos blocos. Ao
final do percurso ele deverá esperar algumas dezenas de minutos para receber
cerca de 25 reais pelo trabalho realizado. Em alguns casos é preciso esperar o
carnaval terminar e, junto com o sindicato, exigir dos blocos o pagamento em
atraso.
Os foliões dos blocos estão interessados em diversão. A opção em
participar da festa dentro de um bloco de carnaval se dá pelo interesse em não
se misturar com outras pessoas, devido a três principais questões: violência, sexo,
status. A primeira questão parte do pressuposto de que o índice de brigas e
furtos fora dos blocos é grande, o que justificaria a segregação promovida
pelos blocos, onde os brancos, quase negros ou quase brancos de tão ricos se
separam dos negros, quase negros, e brancos quase negros de tão pobres – isso
garante uma segurança aos foliões dos blocos. A segunda questão é sexual.
Quanto mais “branco” for o bloco, mais bonito ele será e, assim sendo, mais
sexualmente atraente. Desta forma, se escolhe o bloco também pela beleza física
de seus foliões. A última questão é o status social. Quanto mais caro e quase
branco de tão rico for o bloco, maior é o status gozado por seus foliões. O
oposto também ocorre: quanto mais barato ou mais preto de tão pobre for o
bloco, menos status ele proporciona. Para estarem no carnaval eles precisam
pagar entre 50 e 890 reais (alguns anos atrás eles também precisavam ser
brancos e bonitos, e comprovar isso através do envio de fotos para os
respectivos blocos, com antecedência).
Os foliões
pipocas estão interessados em
diversão. A opção em não sair em nenhum bloco ou camarote se
dá a partir de duas principais questões: culturais e financeiras. A primeira
questão ocorre com os indivíduos já acostumados em se divertir fora dos blocos,
ou que realmente preferem a festa na pipoca, em vez dos blocos. A segunda
questão é para aqueles que até gostariam de sair em determinados blocos, mas
não possuem dinheiro para tal. Ou até possuem, mas acham que o custo x
benefício é desvantajoso. Para estarem no carnaval eles precisam apenas ir ao
circuito.
Os
grupos sociais fora do carnaval
Os policiais, quase todos pretos, são os mesmos que
garantem a segurança da sociedade nos 358 dias restantes do ano. São milhares
de policiais militares na corporação, o que agrega uma variedade de
personalidades e características. No entanto, a imagem dos policiais é:
profissionais despreparados, brutos, sob uma estrutura institucional precária,
e boa parte corrupta. Além disso, são os que dão porradas na nuca de malandros
pretos e ladrões mulatos. Entre um branco e um preto, sua abordagem é feita ao
preto, já de forma violenta. Pois todos sabem, como se trata o preto.
Os políticos, quase todos brancos, são os mesmos que
tomam as principais decisões que afetam a sociedade nos 358 dias restantes do
ano. São centenas de políticos, o que agrega uma variedade de personalidades e
características. No entanto, a imagem dos políticos é: corruptos, comprometidos
com a elite econômica e as alianças partidárias, incompetentes e oportunistas.
Os
cantores, de cima do trio, são os cantores que aparecem na televisão, são os
atores das telenovelas, os participantes do Big Brother ou os modelos das
propagandas de cerveja. São os exemplos clássicos de beleza, riqueza e sucesso.
São tudo aquilo que a mídia apresenta como referencial humano e, ao mesmo
tempo, tudo aquilo que os malandros pretos, ladrões mulatos, pretos, quase
pretos, quase brancos, quase pretos de tão pobre, pobres e podres ambicionarão
ser, mas nunca serão. Alguns pretos até conseguirão ser, caso façam sucesso com
alguma música de pagode. Mas será esporádico, talvez dure apenas um carnaval.
Para atingir o grau mais elevado de admiração, precisarão ser brancos ou quase
brancos de tão ricos.
Os vendedores ambulantes, quase pretos e quase brancos,
podem ser comparados ao grosso da população: trabalhadores árduos, mão-de-obra
barata, de família pobre, com pouco estudo e que sustentam com trabalho o
divertimento das classes médias e altas. São as empregadas domésticas que
acordam 5 horas da manhã, para preparar o almoço dos filhos e, em seguida, ir
para o ponto, esperar o ônibus das 6:30; para sair de seu bairro – pobre e
afastado do centro – em um ônibus mal conservado e superlotado, para chegar no
apartamento de seus patrões às 8:00; para realizar uma cansativa e massiva
jornada de trabalho e, ao entardecer, partir de volta para o seu lar, tendo que
enfrentar um ônibus ainda mais cheio e um trânsito ainda mais congestionado;
ação esta repetida diariamente, o que lhe renderá um salário mínimo no final do
mês. Os vendedores ambulantes, além de empregadas domésticas, são também
vendedores dos comércios e shopping centers da cidade, são garis e zeladores.
São jardineiros, guardas-noturnos, casais. São passageiros, bombeiros e babás.
São faxineiros, bilheteiras, baleiros e garçons.
Os cordeiros são desempregados, moradores de rua,
aposentados, viciados em droga, estudantes. Mas são, sobretudo, porteiros e
seguranças. São os primeiros no front,
a defender a propriedade privada (que não é sua, mas é a que garante o seu
emprego). São o elo direto entre a sociedade e os proprietários. São os que
autoriza a entrada e saída das pessoas. São os primeiros a morrerem ou serem
feitos de refém quando criminosos da sociedade decidem invadir determinado condomínio,
ou assaltar um banco.
Os foliões dos blocos são milhares, o que agrega uma
variedade de personalidades e características. No entanto a imagem que eles
passam são de pessoas oriundas de famílias de classe econômica média e classe
econômica alta. Jovens que possuem plano de saúde, plano odontológico e que
puderam estudar toda a vida em bons colégios particulares, que poderão
ingressar em uma universidade pública – mas se não ingressarem, não tem
problema, pois existem as faculdades particulares pagas pelos pais – e que
poderão começar a trabalhar só a partir dos 25 anos, depois de concluírem sua
graduação. São os futuros médicos, advogados e engenheiros. São os que não
precisam arrumar a cama, pegar ônibus, nem se preocupar com contas a pagar. São
os que podem fazer um curso de inglês ou um intercâmbio na Espanha. São os que
podem malhar para ficar bonitos. São os que podem comprar roupas de marca e da
moda, para ficarem bonitos. São os que podem comprar os melhores cosméticos,
para ficarem ainda mais bonitos. São os que podem amar ao próximo como a si
mesmo, não discriminar ninguém por sua cor ou credo; são os que não fazem mal a
ninguém, respeitam as leis de trânsito e dão esmola aos mendigos; são os que
não têm culpa de terem tido oportunidades e só querem ser felizes. Ainda assim,
continuarão sendo quase todos brancos, quase brancos de tão ricos, que atrai,
deslumbra e estimula.
Os foliões da pipoca são milhões, o que agrega uma
variedade de personalidades e características. Na pipoca, ao contrário dos
blocos, há uma menor segmentação. Há uma grande variedade de cores, roupas,
sexos, culturas, classes. Há também os malandros pretos e os ladrões mulatos.
Dentre eles, o mesmo jovem mulato – o agressor do início do capítulo.
O
fato, sob o ponto de vista do agressor
Para o agressor, não houve gratuidade em sua ação. Talvez
esse ladrão mulato seja filho de um cordeiro com uma vendedora ambulante.
Talvez.
Provavelmente ele se frustra por não ser um artista em
cima do trio, ou por levar porrada na nuca, de uma fila de soldados quase todos
pretos. Provavelmente.
Mas, certamente ele viu uma representação simbólica no
jovem branco– que nunca se saberá se ele é um mocinho ou vilão; uma pessoa boa
ou ruim; uma pessoa rica ou pobre, filho de uma mãe prostituta ou advogada; ou
que quer construir um país ou abandoná-lo por uma pasta de dólares. Nada disso
importou para o agressor. E o que ele viu foi um jovem, branco, músculos
definidos, vestido com um abadá de um bloco de carnaval, bermuda e tênis da
marca “Nike”. E a representação social que ele tirou é que esse jovem era
branco, com todas as oportunidades que o ladrão mulato nunca teve (incluindo o
plano odontológico); que tinha músculos definidos, fruto de uma malhação em
academia, onde o ladrão mulato nunca pôde freqüentar, o que só perpetuará ainda
mais a sua feiúra (o que não deve ser fácil, em uma sociedade que coloca a
sensualidade em primeiro lugar); viu também que o jovem branco estava vestido
com um abadá de um bloco, o que significa dizer que ele tem dinheiro de sobra –
dinheiro, o que o ladrão mulato nunca teve e por isso nunca pôde fazer o que
tivesse vontade, como comprar um abadá de um bloco, levar uma namorada para o
cinema, ou simplesmente comprar um tênis Nike, igual ao do jovem branco. Enfim,
o ladrão mulato viu no jovem branco tudo aquilo que a sociedade coloca como
referencial de sucesso e prestígio (onde o oposto é um referencial de fracasso
e exclusão) e isso soou para ele tão violento e tão agressivo que a única forma
de expressar sua reação foi dando um soco no rosto do jovem. Claro que ele
poderia reagir de outras formas, como escrever um livro, compor uma música,
participar de um programa de auditório ou promover uma passeata. Mas ele optou
em dar um soco no rosto do jovem branco.
Pense
no Haiti
No carnaval de Salvador, com cerca de 2 milhões de
pessoas por dia, quase ninguém se conhece e, portanto, é missão quase
impossível decifrar a personalidade e história de cada um que se diverte na
folia. É por isso que, mais do que nunca, a imagem passa a prevalecer sobre a
essência de cada indivíduo.
Desta forma, a imagem da elite branca gozando de espaço,
conforto e comodidade no seu camarote é bastante violenta para o folião pipoca
espremido entre a maderite que separa o camarote, da elite, e as cordas que o
separa do folião do bloco, da elite. E muitas vezes, neste espaço físico, onde
só cabe uma fileira de pessoas, ainda é necessário dividi-lo com uma fileira de
policiais que passa para garantir a ordem da festa. Neste caso, só restam duas
opções: agarrar a maderite do camarote, coberta de mijo, ou se lançar na
direção das cordas do bloco. Neste caso, só restam duas opções: ser empurrado
pelos cordeiros do bloco, ou receber uma porrada de um dos cassetetes de um dos
policiais. Neste caso, a violência física é bastante dolorosa. Em todos os
casos a violência moral e imagética é ainda maior.
É por isso, também, que imagem do cordeiro segurando sua
corda e o folião do bloco se divertindo é violenta. O cordeiro é preto e pobre.
O folião do bloco é branco e quase rico de tão branco, ou quase branco de tão
rico. O cordeiro está passando três horas de bloco para ganhar menos de 10% do
que o folião pagou para poder se divertir no dia. O cordeiro queria mais era
estar se divertindo, em vez de trabalhar. O folião não só queria, como pode. O
cordeiro não pode, por isso trabalha em condições miseravelmente violentas,
para sustentar a diversão dos foliões dos blocos. O folião pode até ser uma
pessoa boa, e o cordeiro pode até ser uma pessoa má, mas a imagem deles dois,
juntos em uma mesma fotografia, lembra a época do adro da Fundação Casa de
Jorge Amado, onde os escravos eram castigados.
A imagem de um malandro preto arrancando a carteira de um
homem descuidado é violenta.
A imagem de um deputado mal dissimulado, diante das
lentes do Fantástico, enaltecendo a grandeza épica de seu povo e a grande festa
carnavalesca de sua cidade também é violenta. Sobretudo para os vendedores
ambulantes que enfrentam filas por um atendimento médico, que perdem filhos e
netos pela falta de um atendimento médico; que não têm emprego e ainda têm de
pagar uma taxa de 25 reais para poderem trabalhar no carnaval, cuja arrecadação
vai parar na secretaria governada pelo mesmo partido do deputado, que aumenta o
seu próprio salário anualmente, aumentando também o preço das passagens de
ônibus, e aumentando também a propina paga pelas empreiteiras. Talvez não haja
nada mais violento para o vendedor ambulante do que o sorriso de um deputado,
diante das tv´s, em pleno carnaval.
Por fim, é também violenta a imagem de um ladrão mulato
dando um soco “gratuito” em um jovem folião.